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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Brás é Cinza

Crônica que eu mandei para o concurso cultural BB 2010. Ganhei uma menção honrosa e um fim de semana no Rio de Janeiro, com acompanhante!!! É muito bom ter ficado entre os 30 selecionados em meio a 343. O texto é um tanto quanto amargo. Acho que expressa os sentimentos de um recém chegado à metrópole:


O Brás é cinza. Suas calçadas se misturam às paredes das fábricas, aos postes e ao céu, formando uma grande massa monocromática. Até o preto do asfalto e dos fios que riscam o horizonte por toda a parte é fosco. O ar é encorpado, cansa os olhos e os pulmões, transportando o odor de esgoto junto à massa de poluição da cidade. Espremidos entre barracões, há prédios realmente delgados, com a face da rua comportando somente uma janela pequena, dando a impressão de que o edifício é formado por uma série de corredores empilhados. Alguns deles são adornados por pastilhas multicoloridas. Mesmo esses são cinzas. Na maioria das calçadas, homens, mulheres e crianças travam uma luta diária pela existência, habitando onde ninguém deveria habitar, comendo onde ninguém deveria comer, fazendo algum canto de banheiro e algum cimento de cama. Esses já estão definitivamente cendrados.

Foi no Brás que encontrei minha primeira casa em São Paulo e foi no Brás que eu comecei a presenciar a população batalhando com a cidade por espaço. Lá, tentando ganhar a vida na capital, três bons amigos dividiam um apartamento de 40 metros quadrados onde não cabia mais ninguém. Mesmo assim me receberam e me deram 3 metros quadrados perto da estante, 2 pro colchão, 1 pra mala. Como em tantos casos similares, cheguei à capital e fui superlotar uma habitação, ajudado pelos que haviam se arriscado primeiro. Essa cidade tem muito disso, compartilhar as dificuldades – sofremos juntos os desaforos que ela nos impõe.

No primeiro dia em que fui trabalhar no centro da metrópole entrei na estação de metrô do Brás por volta das 07h30min. Ali a linha vermelha sentido zona leste-centro, notoriamente a mais lotada, recebe o influxo de três linhas de trens metropolitanos. Eu nunca havia visto tantas pessoas juntas tentando tomar uma condução. A sensação foi de pavor. Uma verdadeira agorafobia. Na linha vermelha, no horário de pico, é quase impossível se mexer. Não dá pra coçar o nariz. Se um braço é levantado, só vai ser abaixado quando o passageiro sair do vagão. É nesse momento que você nota que as pequenas telas de LCD pendendo do teto apresentam imagens de lugares paradisíacos do Brasil, geralmente uma bela praia, com o título de "Preferia Estar", promovendo a maior piada de mau gosto do metrô.

Os paulistanos enfrentam a superlotação com distanciamento, da mesma maneira que um alcoólatra enfrenta a vida. Se estão desacompanhados, olham para o nada até o destino, como se estivessem a sós no vagão, ou em um lugar longínquo. Se estão com alguém, conversam sem qualquer discrição, falando alto os assuntos mais privados, como se estivessem em um local reservado: No trem lotado os paulistanos viajam sozinhos.

Esse distanciamento é o sintoma principal da vitória da cidade. Após os medos e desencantos iniciais, os prédios, as avenidas, os trens e as pessoas passam a ser apenas coisas produzidas do mesmo material. E se passa a enxergar toda a cidade como o Brás, e toda fila como mais uma parte do dia e todo pedinte como mais uma parte da vida. A rotina em São Paulo é uma besta dissimulada e persistente, que ganha por meio do cansaço. Ela suga suas cores dia após dia, consumindo tudo em fogo brando, e, de repente, você se observa no espelho e vê apenas cinzas.